Clima e estratégia internacional:

Novos rumos para o Brasil

Relatório Clima e estratégia internacional

Após quatro anos de isolamento, o Brasil volta ao cenário internacional com um novo governo progressista em um momento em que as mudanças climáticas ocupam lugar central nas relações internacionais. Como o Brasil pode incorporar o clima e o meio ambiente na sua atuação externa? O projeto “Clima e estratégia internacional: novos rumos para o Brasil” propõe algumas linhas prioritárias de atuação do Brasil no cenário internacional, tendo no cerne as agendas de clima e de desenvolvimento sustentável.

O projeto busca aliar clima (definido amplamente como mitigação, adaptação, perdas e danos, financiamento e justiça climática) à busca ao desenvolvimento sócio-econômico. Apenas combinando estas duas esferas o Brasil irá produzir uma política sustentável, soberana e solidária. Essa estratégia deve estar fundamentada em dois pilares: a promoção do desenvolvimento inclusivo, solidário e sustentável e a defesa de uma ordem global multipolar, democrática e justa

O projeto faz parte de uma articulação liderada pela Plataforma CIPÓ em parceria com a Fundação Perseu Abramo.

Quem somos

A Plataforma CIPÓ é um instituto de pesquisa brasileiro independente e sem fins lucrativos que atua na interseção entre as agendas de clima e relações internacionais. A sede fica no Rio de Janeiro.

A Fundação Perseu Abramo é um instituto brasileiro de pesquisa, divulgação e formação política criado em 5 de maio de 1996 pelo Partido dos Trabalhadores para desenvolver projetos de caráter político-cultural.

O projeto também conta com insumos e interlocução com representantes de diversos setores: movimentos sociais e organizações da sociedade civil, inclusive de grupos com sub-representação em espaços de poder; setor público; setor privado; e academia, entre outros.

Resgatando a credibilidade internacional

O primeiro passo para recuperar a credibilidade perdida pelo Brasil é reverter os elevados índices de desmatamento e de queimadas, principalmente na Amazônia. Em 2023, as ações mais urgentes na área climática devem ser a revitalização dos órgãos federais sucateados, como o Ibama, ICMBio e a Funai e a revogação e substituição dos atos normativos (“boiada”) que contribuíram para o desmonte da área climática e ambiental. Também é necessária a atualização com melhorias dos planos de controle e prevenção do desmatamento da Amazônia e do Cerrado, o fortalecimento da fiscalização, a aplicação efetiva de penalidades e melhorias no rastreamento da carne e de outras commodities que estão pressionando a floresta. No plano externo, o Brasil deve sinalizar seu compromisso inequívoco com a proteção socioambiental. Uma das primeiras medidas deve ser anunciar uma Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) mais ambiciosa e acompanhada de estratégia crível e transparente de redução de emissões. O Brasil também deve retomar a cooperação bilateral com países parceiros e fomentar o aprimoramento de mecanismos de captação de doações para investimento internacional em ações de enfrentamento ao desmatamento e de preservação da biodiversidade, comunicando, inclusive, a intenção de reativação imediata do Fundo Amazônia. O Brasil deve, ainda, demonstrar liderança para criação de novos arranjos cooperativos.

Uma nova visão para a Amazônia e outros biomas

É fundamental que a política internacional brasileira esteja centrada na ideia de que cooperação e soberania nacional não são mutuamente excludentes, pelo contrário: se fortalecem. Por isso, uma visão sustentável para a Amazônia deve ir além do combate ao desmatamento, tendo a cooperação internacional com os países pan-amazônicos como centralidade. O fortalecimento político e orçamentário da Organização do Tratado de Cooperação da Amazônia (OTCA) deve servir de âncora central para a cooperação regional para a floresta e seus povos. O Parlamento Amazônico e o Observatório Regional da Amazônia representam plataformas complementares que devem ser alavancadas em prol de uma cooperação pan-amazônica mais profunda e duradoura. Além disso, é urgente a realização da 4ª Reunião de Presidentes dos Países Amazônicos, fórum de diálogo não-permanente no âmbito da OTCA que reúne os presidentes dos países membros da organização. O desenvolvimento sustentável na Amazônia, assim como nos demais biomas, deve ser traçado com base na inclusão social, na justiça climática e na proteção de seus ativos ambientais. A estratégia internacional pode ajudar a tornar isso uma realidade, por meio da cooperação e da defesa de uma governança mais eficaz na promoção da justiça climática.

A defesa da transição justa e soberana

Para o Brasil, a agenda climática deve fazer parte de uma agenda de transição justa, equitativa e soberana. Esta, no entanto, deve ir bem além da transição energética: também significa avançar na construção de uma agenda sustentável para a agricultura, garantindo que a ampliação da produtividade seja concomitante à manutenção da floresta em pé, que partes da cadeia de produção do agronegócio contenham maior valor agregado e que o Plano Agricultura de Baixo Carbono e projetos ligados à agricultura familiar e à agroecologia ganhem mais recursos; significa avançar na agenda de construção de soberania alimentar para que produção, acesso e consumo de alimentos tenham consigo sustentabilidade e dignidade, e na qual a biodiversidade e os bioinsumos sejam valorizados e incorporados, ao invés do uso excessivo de agrotóxicos. A transição também requer avançar na construção de um novo projeto de mineração mais sustentável, em que o extrativismo predatório seja combatido e que elementos de impacto socioambiental, escala e descentralização sejam levados em conta na formulação das políticas. Finalmente, significa avançar na agenda de industrialização verde e a digitalização responsável como componentes da recuperação da pandemia de Covid-19.

O Brasil nas Conferências das Partes (COPs)

No âmbito das Conferência das Partes (COPs), o Brasil deve adotar uma postura mais proativa, tendo como base não apenas o Acordo de Paris, mas também outros compromissos, como a Declaração dos Líderes de Glasgow sobre Florestas e o Compromisso Global do Metano. Embora a mitigação ainda seja importante, é necessário ter posicionamentos claros e propositivos para as agendas globais de adaptação, perdas e danos e financiamento climático, transversalizando o conceito de justiça climática. O financiamento climático permanece escasso não apenas para adaptação, mas também para as perdas e danos. O Brasil deve reivindicar o avanço em mecanismos como o L&D Finance Facility (LDFF), proposto pelo G77 junto à China. Tendo o conceito de “justiça climática” no centro da estratégia internacional, o Brasil terá condições de influenciar, a partir de uma perspectiva do Sul, uma agenda que tradicionalmente é pautada a partir do Norte. A agenda climática oferece novas possibilidades para uma visão comum entre países e sociedades do Sul, e o Brasil pode desempenhar um papel chave nesse esforço, mobilizando outros países em desenvolvimento com forte atuação na área climática para que a segunda edição da Comissão do Sul seja lançada. Essa lógica não deve ser restrita às conferências do clima. Em comparação com as COPs climáticas, os espaços de negociação das convenções globais sobre biodiversidade e desertificação recebem comparativamente pouca atenção e recursos. Valendo-se da coordenação com outros do Sul, o Brasil pode mobilizar apoio aos dois acordos. No âmbito da Convenção da Diversidade Biológica, o Brasil deve defender um Marco Global da Biodiversidade pós-2020 forte. Deve, ainda, defender formas de mitigar o avanço das terras áridas e pressionar pela ampliação do financiamento climático para tal fim.

O clima como a base para a integração na América Latina e Caribe

Na política internacional do Brasil para o clima, a América Latina e Caribe deve ser a região prioritária. Atualmente os organismos de integração regional não têm estrutura institucional atualizada para avançar na agenda climática. Por isto, no processo de revitalização dos organismos regionais de integração, é necessário reestruturar os organogramas institucionais, privilegiando o clima e o desenvolvimento inclusivo, solidário e sustentável. A estratégia regional deve estar ancorada no tripé Mercosul-Unasul-OTCA, com uma divisão de agendas entre os arranjos. Na Unasul, organismo ao qual o Brasil deve retornar de imediato, o clima deve ser trabalhado de forma transversal e em cooperação com outras agendas, como saúde, combate ao crime organizado, energia e infraestrutura. Além disso, um organismo específico para a agenda deve ser criado. No Mercosul, a prioridade imediata deverá ser o fim da agenda de flexibilização. A partir daí, é necessário avançar na agenda sócio-ambiental e viabilizar a inclusão da Bolívia no bloco. Em específico, as agendas de adaptação e de construção de governança sobre extração do lítio deverão ser assuntos prioritários. O Acordo Mercosul-UE deve ser amplamente revisto para, se implementado, enfatizar elementos de responsabilidade sócio-ambiental e revisar aspectos que reforçam a tendência de desindustrialização nos países do Mercosul. O capítulo sobre Comércio e Desenvolvimento Sustentável deve ser fortalecido de forma a incorporar compromissos mais robustos. É necessário, também, promover a consolidação de novos espaços promissores, notadamente dando impulso à ratificação urgente do Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe (Acordo de Escazú), através do qual será possível promover transparência, inclusão e a justiça climática no Brasil e na região, com o objetivo de juntar as agendas de meio ambiente e direitos humanos com construir uma democracia ambiental regional.

A cooperação com parceiros africanos e asiáticos

A cooperação sul- sul e triangular deverá ser um instrumento fundamental para a nova política internacional do Brasil para o clima. A África deve voltar a ocupar um lugar central para a política externa brasileira. Não apenas o Brasil deve reconstruir seus laços de relações profundas com o continente, com ênfase na reconstrução da cooperação sul-sul e da retomada das relações comerciais e econômicas, mas também deve inseri-las em um processo político mais profundo, com o alinhamento dos interesses políticos e comerciais do Brasil e dos países africanos. Neste sentido, é fundamental que a retomada da política africana do Brasil tenha as agendas de clima e meio ambiente como centrais. Para fortalecer os componentes climáticos dessa cooperação, o Brasil pode ampliar os intercâmbios nos temas de soberania alimentar, no qual a Embrapa já exerce papel fundamental de cooperação técnica, e de soberania energética, com ênfase no processo de eletrificação do continente e sempre incorporando a preocupação com a geração de renda e empregos dignos à concepção de transição justa e soberana. Neste processo, o Novo Banco dos BRICS (NDB) deverá ter um papel fundamental. Deverá ser prioridade, também, a ampliação dos acordos comerciais, seja no plano bilateral seja via acordos por blocos e organizações regionais. Uma forma de assegurar um alto grau de competitividade das exportações brasileiras passa por aumentar a sustentabilidade da sua agricultura, criar sistemas de certificação confiáveis e com ampla aceitação e inovar em mecanismos de devida diligência eficazes e compatíveis com o sistema multilateral de comércio e regras da Organização Mundial do Comércio (OMC).

A cooperação em clima com os países industrializados

Um aspecto da política climática internacional que merece mais atenção é o financiamento climático. Em um momento em que os retrocessos ocasionados pela pandemia de Covid-19, a guerra na Ucrânia e o endividamento excessivo constrangem as possibilidades de desenvolvimento sustentável e de transição justa no Sul, o Brasil — alinhado com outros países do Sul — deve pressionar, inclusive por meio do BRICS, por reformas estruturais e substantivas nas Instituições de Bretton Woods e propor mecanismos inovadores para alavancar novos recursos, tais como o blended finance, que combina recursos de fontes diversas, para viabilizar a adaptação climática e a transição justa nos países em desenvolvimento. Neste sentido, é fundamental que a agenda do BRICS seja atualizada face à emergência climática, por exemplo através das trocas em torno das respectivas estratégias de descarbonização — refletidas, inclusive, nas suas NDCs, e de transição justa.

O Brasil possui plena capacidade para resgatar e ampliar o seu legado

O Brasil possui plena capacidade para resgatar e ampliar o seu legado. Experiências passadas demonstram que o Brasil possui capacidade não apenas de combater o desmatamento e promover inovações para a descarbonização, mas também de propor e mobilizar apoio para novas iniciativas globais. Os brasileiros e brasileiras estão cada vez mais preocupados com as mudanças climáticas, que afetam, direta ou indiretamente, milhões no Brasil. A sociedade civil organizada que trabalha na área climática nunca esteve tão bem coordenada e diversificada. Além disso, diversos movimentos historicamente associados à luta dos trabalhadores passaram a construir agendas climáticas com mais atenção. Os movimentos que tratam da justiça ambiental e climática tornaram-se mais robustos, com cada vez mais lideranças indígenas e quilombolas, assim como grupos representativos de outras populações tradicionais. Surge também novo grau de protagonismo e novas formas de atuação por parte dos governos subnacionais, seja por municípios e estados individualmente ou através de parcerias. Em termos de governança, imediatamente após a tomada de posse, será preciso pôr em marcha um plano para recuperar as capacidades perdidas na máquina do Estado e reatar os laços construtivos com os atores não estatais que são fundamentais para a implementação de uma visão de desenvolvimento inclusiva, solidária e sustentável. Para além da “reconstrução com melhorias” dos órgãos de Estado sucateados, será necessário implementar um arranjo de governança que permita a elaboração e implementação de uma agenda climática espelhada nas duas esferas abordadas no presente documento: a doméstica e a internacional.